POESIA: EU SEI MAIS NÃO DEVIA- MARINA COLASSANTI

EU SEI, MAS NÃO DEVIA.


Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ter outra vista a não ser as janelas ao redor.
E porque não tem vista, se acostuma a não abrir as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a ascender mais cedo a luz.
E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque já passou da hora, a comer correndo porque está atrasado, a deitar cedo sem ter vivido realmente o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra e aceitar tanto a guerra quanto os mortos e feridos.
A gente se acostuma à poluição do ar e sonora, a não ouvir mais passarinhos e a não ter galo de madrugada. A não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a suportar a dor sem procurar um médico, a não procurar lugares diferentes, a não começar novas atividades, a não procurar novos amigos, a não telefonar para as pessoas que a gente gosta. A aturar pessoas com quem convivemos, sem reagir.
A gente se acostuma a guardar dinheiro, a não gastar mesmo quando isso nos daria prazer. A não procurar o prazer. A comer sempre as mesmas coisas, a dizer sempre as mesmas frases. A fazer tudo sempre igual.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber e vai afastando uma dor, um ressentimento ali, uma revolta acolá, para evitar feridas, para poupar a vida, que aos poucos se gasta e se perde por si mesma. Gasta de tanto se acostumar.
Para não ter de se arriscar? Para não ter de pensar? Por preguiça? Por que? E o que perdemos? O que nos tornamos? Autômatos, robôs? O que perdemos? Renovação, prazer, estímulos, sensibilidade, carícias.

O que aconteceria se criássemos alguns novos hábitos?
Marina Colassanti.