E pra não dizer que não falei de flores
Imagine que você acaba de se mudar para uma cidade do interior, não importa de qual Estado brasileiro. Dessa cidade você nada sabe, desconhece seus atrativos, sua potencialidade. Terá tempo de sobra para descobri-los. Sua preocupação maior, pelo menos neste primeiro momento, é procurar uma escola para sua filha de 4 anos. Quer para ela uma boa escola e tem certeza de que vai descobri-la. Não importa se é pública ou particular, se está encostada à sua casa ou se fica longe dela. O que você quer é uma escola realmente excelente, com professores animados e uma meta de ensino e construção da pessoa transformada em paixão.
Logo a primeira escola que descobre a encanta. Conversando com seus professores, aprende que sua filha não será alfabetizada por este ou por aquele método, dominado de forma insegura por este ou por aquele professor, mas que a alfabetização se desenvolverá, respeitando a fase pré-silábica que sua filha superou, para a silábica que começa a descobrir. Aprende que esse profundo respeito pelo desenvolvimento da criança estrutura as bases racionais de sua descoberta pelo mundo das palavras, que os professores estudam e praticam com paixão (1).
Encanta-se e quer saber mais, muito mais, sobre essa escola. Descobre, assim, que trabalha conteúdos, mas o faz sem perversas obsessões. Sente que para os professores que tem à sua frente, mais vale um espírito bem formado que uma cabeça cheia (2). Descobre que esses professores, comprometidos com a atualidade, jamais irão olhar para sua filha acreditando que um dia sua educação se completará. Crentes de que a verdadeira aprendizagem é permanente (3), estimularão suas caminhadas pelo mundo do saber, respeitando os estágios de sua mente e de suas inteligências e tendo para cada um deles uma estratégia de fascínio, um desafio de encantamento (4).
Entrando em salas de aula, vendo professores e alunos em ação, estudando juntos e juntos construindo seus projetos interdisciplinares (5), descobre que naquela pequena escola toda criança é sempre o agente essencial de seu crescer e seus saberes de vida e do mundo, do corpo e das emoções são as âncoras significativas às quais os novos aprenderes são praticados (6). Descobre que nesse ambiente de ternura e paixão, jamais sua filha, sua amada Cristina, será avaliada senão por seus próprios passos e progressos, que a comparam apenas com ela mesma, e pelos caminhos por onde andou (7).
Percebe que existe unidade nos objetivos dos mestres de ajudar sua filha a decodificar seus saberes, expressando-os por inúmeras linguagens, no usufruto pleno e infinito de todas as suas inteligências (8). Sabe que nessa escola, sua garota, junto com as lições de vida, descobrirá o querer, aprenderá o sentir, construirá maneiras diferentes de pensar e, dessa forma, agirá e procederá com alegria e coerência, paixão e entusiasmo, abnegação e consciência (9).
Sai radiante da escola que descobriu. Perceberá que ela abre suas portas com carinho e ternura para as crianças mais bem-dotadas, sem se fechar jamais para aquelas que trazem deficiências de aprendizagens, emoções "amarradas". Para estas existe a incondicional aceitação de que, com crença e conhecimento, método e obstinação, sempre será possível tornar alguém melhor (10). É, afinal, uma escola que, porque ensina, reflete; porque reflete, politiza e, porque politiza, insere a pessoa no mundo e em suas circunstâncias, não apenas para que nele viva, mas sobretudo para que o construa e transforme (11).
Seu entusiasmo pela descoberta é tão grande, sua alegria por encontrar a escola certa tão radiante que, eufórica, sai sem nem mesmo perguntar pelo nome dos professores. Não importa. Voltará outro dia e perguntará. Saberá que seus nomes são Emília e Miguel, Jan e João, Davi e Paulo.
Se, por curiosidade, buscar nesses quase anônimos personagens as raízes de quem assim tão admiravelmente construiu a arquitetura desse pensar, talvez com surpresa perceberá (1) Emília Ferreiro; (2) Michel de Montaigne; (3) Jan Comenius; (4) Jean Piaget; (5) John Dewey; (6) David Ausubel; (7) Lev Vigotsky; (8) Howard Gardner; (9) Jean-Jacques Rousseau; (10) Feurstein e (11) Paulo Freire.
Autor: Celso Antunes (professor e psicopedagogo).
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